A vida secreta das trufas III

Elas não apenas servem aos gourmets, mas desempenham papel essencial na saúde dos ecossistemas

O formato dela é visivelmente menos complexo que o do cogumelo. O fungo não precisa mais liberar a energia necessária para empurrar os tecidos que contêm os esporos para cima da terra num talo (estipe) ou desenvolver um chapéu (píleo) ou outra estrutura para produzir e liberar os esporos. A trufa não passa de uma pelota de tecido que contém os esporos, geralmente envoltos por uma pele protetora. O problema é que as trufas por si mesmas não conseguem liberar os esporos, pois estão presas em seu reino subterrâneo; o feito demanda um sistema de dispersão alternativo. E aqui repousa a complexidade do seu esquema. Durante milhões de anos em que as trufas se recolheram para dentro da terra, mutações levaram à formação de compostos aromáticos que atraem os animais. Cada espécie de trufa tem a própria diversidade de aromas, quase ausentes nos espécimes imaturos, mas que intensificam e emergem assim que os esporos amadurecem. Dos milhares de tipos de trufas existentes hoje, apenas algumas dúzias agradam aos homens. O resto é pequeno ou duro demais, ou o cheiro não é notável ou mesmo repugnante. No entanto, para outros animais, são irresistíveis, pois seu encanto olfativo se eleva do solo. Pequenos mamíferos como ratos, esquilos e coelhos no hemisfério norte, e cangurus-ratos, tatus e suricatos, no hemisfério sul, são os principais apreciadores de trufas. Mas seus companheiros maiores – veados, ursos, babuínos e wallabies, entre outros – também buscam os fungos escondidos. Os moluscos são igualmente atraídos pelas trufas. Os insetos podem se alimentar de trufas ou botar ovos nelas, para suas larvas já terem uma fonte de alimento assim que saírem.

Quando um animal come uma trufa, a maior parte da polpa é digerida, mas os esporos passam inteiros e são defecados no chão, onde poderão germinar se as condições forem favoráveis. Esse sistema de dispersão apresenta vantagens sobre o empregado pelos cogumelos. As fezes concentram os esporos, em contraste ao espalhamento mais difuso que ocorre com a disseminação aérea. Além disso, há maior possibilidade de as fezes serem depositadas nos mesmos tipos de áreas onde os animais se alimentam de trufas, em oposição ao transporte mais aleatório de esporos levados pelo ar. Essa semelhança de ambiente é benéfica por aumentar a probabilidade de os esporos pararem num local que tenha espécies adequadas de plantas onde as micorrizas se estabelecem. No entanto, nem todas as trufas se apoiam no perfume para atrair animais. Na Nova Zelândia, que sofre de falta de mamíferos nativos terrestres, algumas trufas evoluíram com tons arco-íris, imitando as cores das frutas valorizadas pelas aves locais. A trufa do fi lo Paurocotylis, por exemplo, afl ora na terra conforme se expande e fica no chão da floresta, semelhante a uma base de grãos vermelhos, redondos, das árvores Podocarpus, um dos alimentos prediletos das aves. (Embora esses fungos coloridos surjam acima do chão, ainda assim são considerados trufas por terem seus tecidos portadores de esporos envoltos numa pele e, portanto, dependerem de animais para dispersá-los.) No entanto, outro mecanismo de dispersão evoluiu dentro de alguns grupos de trufas, especialmente membros da onipresente família Elaphomycetaceae e Mesophelliaceae, endêmicas na Australia. Os esporos amadurecem como pó, em vez de um tecido carnudo, com poros. O pó da Elaphomyces granulatus, por exemplo, fica envolto numa casca grossa, que é consumida por animais, liberando os esporos. Algumas como a Mesophelliaceae têm uma estrutura semelhante; outras, como a Mesophellia glauca, exibem uma massa de esporos em pó, prensados entre uma casca externa fina e dura e um miolo comestível. Mesmo os esporos de trufas não consumidas podem circular. Após a maturação, apodrecem e se tornam uma suspensão viscosa e infestada de larvas no solo. Os invertebrados se alimentam desse tecido apodrecido ou passam por ele, absorvendo os esporos em seu caminho. Os esporos de trufa também viajam quando os predadores capturam uma pequena espécie que consome as trufas: corujas e gaviões podem carregar roedores repletos de trufas por distâncias consideráveis até seus ninhos ou refúgios, onde eles se alimentam da presa inteira ou a destripam e descartam as entranhas. De qualquer maneira, os esporos retornam ao solo, onde podem dar origem a novas trufas.
Eternamente Juntos
As experiências na evolução das trufas foram extraordinariamente semelhantes tanto no hemisfério norte quanto no sul, apesar de terem ocorrido muito tempo após a separação dos continentes. As plantas hospedeiras nessas regiões são totalmente diferentes: pinheiros, faias e carvalhos, por exemplo, se associam com as trufas no norte, enquanto no sul esse papel é desempenhado pelos eucaliptos e faias sulinas. As espécies de trufas e animais são igualmente distintas nos dois hemisférios. Mesmo assim, os ecossistemas e seus componentes – árvores, trufas e animais – têm um comportamento bastante similar. A maior diversidade conhecida dentre as trufas ocorre nas áreas temperadas da Europa mediterrânea, no oeste da América do Norte e na Austrália (embora a maior parte da Ásia, África e América do Sul permaneça ainda inexplorada pelos pesquisadores de trufas). O clima nessas áreas se caracteriza por invernos amenos e chuvosos e verões quentes e secos. As estações de frutificação dos fungos geralmente são a primavera e o outono, quando o clima tende a se comportar de modo irregular: em alguns anos, ocorrem estiagens quentes e secas e em outros há geadas, sendo as duas condições prejudiciais aos cogumelos. Assim, nessas regiões, com o passar do tempo, a seleção natural favoreceu os fungos que buscaram refúgio sob a superfície. Não se sabe ao certo quando exatamente surgiram as primeiras trufas, mas os cientistas já descobriram alguns indícios sobre as suas origens. Os fósseis de ectomicorrizas mais antigos registrados datam de aproximadamente 50 milhões de anos atrás. E os ancestrais dos pinheiros e de outras árvores atuais com as quais as trufas estabelecem relações essenciais surgiram há uns 85 milhões de anos.

Podemos presumir então que as trufas apareceram em algum ponto entre 85 milhões e 50 milhões de anos atrás. Por causa dessa longa associação entre trufas e plantas, não é nenhuma surpresa que os fungos desempenhem um papel importante na ecologia de muitos hábitats. Eles são essenciais não só para a existência de inúmeras espécies de plantas, como também de animais, que acabaram por depender deles como fonte de alimento. Nos Estados Unidos, ao menos um animal, o Myodes californicus, um rato-do-mato, depende quase que exclusivamente das trufas para a subsistência. O esquilo-voador-do-norte, encontrado na América do Norte, também se alimenta principalmente de trufas, quando as encontra na Natureza. Do outro lado do globo, na Austrália, um marsupial conhecido como potoru- de-patas-longas, sobrevive com uma dieta composta por 95% de trufas. Seus primos marsupiais, os cangurus-ratos e os bandicoots (rato-porco), também dependem muito das trufas. Muitos outros animais do mundo todo têm por rotina suplementar suas fontes primárias de alimento com esses fungos. A evolução do conhecimento dos cientistas sobre a relação íntima entre trufas, plantas hospedeiras e animais portadores orienta igualmente os esforços tanto dos produtores quanto dos conservacionistas. No Oregon, na década de 80, Mike Castellano, do Serviço Florestal americano, e Mike Amaranthus, do Mycorrhizal Applications, e seus colegas começaram a montar um viveiro de mudas com os esporos de trufas da resistente espécie Rhizopogon, para ajudar as mudas a resistir à seca e a outras condições estressantes nas plantações.

[Continua] 

Fonte: Scientific American

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